quarta-feira, 18 de agosto de 2010

CINEMA E CONSTRUÇÃO DE IMAGINÁRIOS SOCIAIS: VISÕES SOBRE O MUNDO ÁRABE

Gabriel Balardino, Illen Gustavo, Larissa Lima, Léa Conceição, Natalia Sales, Tayná Barros

INTRODUÇÃO
O trabalho aqui apresentado pretende fazer uma análise crítica a respeito da representação da sociedade e da cultura árabe em filmes alternativos e nos chamados blockbusters, percebendo as diferentes perspectivas apresentadas pelos mesmos, à medida que, retratando-se e retratando o “outro”, nota-se um jogo de diferentes concepções de mundo.
Pretende-se entender como esse tipo de construção é feita e como as ideologias nelas estão contidas. Mais particularmente, busca-se compreender como o cinema representa o chamado “Oriente” e que tipo de representações vincula sobre os mesmos, seja minimizando a complexidade e a riqueza presentes no espaço ou atribuindo significações para o mesmo.

CRIAÇÃO DE IMAGINÁRIOS, ORIENTALISMO E O MUNDO ÁRABE.
O cinema é uma ferramenta criadora de imaginários sociais. O conceito de imaginário que esta sendo utilizado no presente artigo se aproxima do conceito de imaginário-fonte definido por BARBIER (1994). Segundo o autor, “imaginário-fonte é a faculdade de criação radical de formas/figuras/símbolos, tanto psíquico quanto social-históricos, que se exprimem no representar/dizer dos homens”. Por essa definição, o imaginário prescinde de um sujeito para se manifestar, realizando-se como uma interação entre o sujeito e o real. Em relação a esta característica temos que o

Imaginário não é um potencial que ativa a si mesmo, mas uma instância que precisa ser mobilizada por algo que lhe é “externo”, seja pelo sujeito (Coleridge), a consciência (Sartre), a psique (Freud), ou pelo social-histórico (Castoriadis) e, acrescentaríamos, pelo fictício, que desenvolve as potencialidades do imaginário, pois é invenção que transgride os limites do factível. (BARBOSA, 2000)

Levando em conta estas definições, o cinema seria um desses elementos utilizados pelo sujeito no processo de interação e interpretação da realidade, ao incorporar e reproduzir imaginários. O imaginário, porém não é um elemento passivo neste processo, mas atua sobre a sociedade e influencia na relação desta sobre o mundo, assim:

Para Dufrennes, pelas grandes imagens, nós aprofundamos nossa percepção do real. Elas constituem o verdadeiro imaginário percebido como qualidade de percepção do real que exige uma prática, uma ação em relação a este real. (BARBIER, 1994)

O imaginário é uma das bases de construção do estereótipo, atuando na forma como a sociedade interpreta o “diferente”. Além disso, o processo de criação de imaginário também atua na legitimação de discursos para a construção de um efeito de verdade. O processo de criação de um imaginário acerca dos povos árabes se relaciona com o fenômeno do Orientalismo.
O Orientalismo, da forma como estamos analisando, pode ser entendido como a construção de uma imagem estereotipada do “Oriente” realizada pelo “Ocidente”1, este último atuando na construção de um modo de pensar sobre o primeiro. Desta maneira o “Ocidente” protagoniza um processo de legitimação de práticas de dominação através do discurso de uma “superioridade” perante o “Oriente”. A definição aqui tratada aproxima-se daquela definida por Said como “um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e o ‘Ocidente’” (SAID, 2001).
Desde muito tempo, Oriente foi tido como o contraponto ao Ocidente. As principais colônias européias do século XVIII, principalmente da França e da Inglaterra, se situavam no chamado Oriente. Este, para os colonizadores, representava a imagem mais expressiva do Outro, a experiência do contraste. À medida que os europeus passaram a ter um maior contato com a “cultura do Oriente”, desencadeou-se um crescente interesse por parte de estudiosos, aventureiros e colonizadores por assuntos referentes a tudo o que dizia respeito a essa região. Em tal relação se cunha a figura do orientalista, que podia ser desde o escritor e estudioso do Oriente, ao colonizador e comerciante europeu nas suas relações com a Ásia. Esta contextualização histórica permite revestir o conceito de orientalismo sobre outros prismas, assim:

O orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. (SAID, 2001)

Portanto, a relação do Oriente e o Ocidente não é uma relação entre iguais, mas uma relação de subordinação, na qual são usadas estratégias para que tal cenário se mantenha. Dentre elas têm-se o uso do cinema como ferramenta de difusão de representações constituindo um fator de grande importância e de utilização entre os atores hegemônicos na busca de manutenção do status quo. Em contrapartida, há uma forma de fazer cinema produzido por outros agentes na busca por gerar uma nova representação acerca dos povos do Oriente.
Analisar a representação do Oriente no cinema envolve não limitar o estudo às grandes produções, mesmo tendo-se consciência de que o peso delas é maior e mais difundido do que o das produções alternativas. Entender o papel do cinema nas representações espaciais e as tensões geradas entre os diferentes agentes na busca de instituir uma dada visão de mundo é então de vital importância para se entender a relação entre Oriente e Ocidente.

REPRESENTAÇÃO ESPACIAL, CINEMA E IDEOLOGIA
As representações espaciais inseridas na produção fílmica não são meras reproduções da realidade, estas estão enraizadas dentro do contexto dos discursos. O discurso é a prática que delimita o grau de relevância e legitimidade que determinadas idéias e ações podem vir a ter. Essa prática está vinculada à produção de significados responsáveis por tornar o mundo ao nosso redor inteligível. Este conceito está intimamente ligado às relações de poder:

Seguindo Michel Foucault, o discurso é o sítio onde as relações de poder e conhecimento são articuladas e onde os procedimentos de inclusão e exclusão são definidos (Sarmento, 2004)

No jogo das representações espaciais, as considerações acerca das relações de poder, analisadas pelo viés do discurso, são de tamanha importância para se compreenderem as imagens de lugares e pessoas que chegam até nós através do cinema e as significações vinculadas a estas. No caso, por exemplo, das grandes produções hollywoodianas, as representações de outras regiões como as do Oriente Médio estão atreladas a imagens e significações associadas aos interesses das grandes corporações. De maneira mais clara, ver o Oriente Médio através de naturalizações de idéias e concepções acerca do mesmo, pode ser vantajoso para um determinado grupo de pessoas, seja por interesses econômicos ou políticos.
É do interesse político do Estado americano, por exemplo, a vinculação da imagem dos árabes e dos mulçumanos com a imagem da violência e do terrorismo. Na divulgação destas associações através da mídia, sendo o cinema um bom exemplo, o Estado norte-americano se utiliza de uma estratégia para a legitimação da guerra.
Essa relação entre representação espacial e discurso pode ser, ainda, exemplificada quando associada ao conceito de paisagem. A imposição de paisagens-tipo associadas a determinadas regiões não deixa de ser uma tentativa de uma estereotipização de uma determinada região. Podemos remeter às imagens de paisagens do deserto, sempre associadas ao Oriente Médio:

No contexto das paisagens, o poder é a capacidade de impor uma definição específica do ambiente físico [por exemplo] que reflita os símbolos e os significados de um grupo particular de pessoas. O poder pode ser visto como a capacidade para impor uma definição específica da realidade (Sarmento, 2004)

Além de imagens que remetem a um determinado tipo de paisagem, outras também costumam ser associadas ao que chamamos de Oriente. Os povos do Oriente há muito tempo são tidos, por exemplo, como exóticos, primitivos, promíscuos, bárbaros, ignorantes. Estas características associadas aos povos do Oriente pelo Ocidente são expressas numa representação hegemônica que se faz presente também no cinema, especialmente nos chamados blockbusters.
Após os atentados de 11 de setembro velhos estigmas foram reafirmados e novos passaram a ser produzidos. Atualmente, a imagem do Oriente, especialmente dos povos árabes, está muito mais atrelada à ideia da violência, do terrorismo, do machismo e da barbárie do que do misticismo.

AS REPRESENTAÇÕES DOS ÁRABES NO CINEMA
O documentário Filmes Ruins, Árabes Malvados, baseado no livro Reel Bad Arabs do autor Jack Shaheen, apresenta uma análise crítica da visão denegridora do mundo árabe tradicionalmente veiculada pelos filmes hollywoodianos. No filme, o diretor Sut Jhally expõe a forma deturpada como é retratada a imagem do árabe, que sempre encarna a figura do mal, sendo subjugado pela figura heroica do ocidental.
Entre os vários filmes citados no documentário, podemos enfatizar Gladiador (2000), True Lies (1994) e, até mesmo, o clássico da Disney Aladdin (1992), sendo este inclusive alvo de severas críticas por conter cenas moralmente questionáveis, que reforçam a visão desvirtuada que temos do árabe. O desenho conta a história da paixão entre Aladdin, um jovem pobre, e a princesa do reino no qual vivem. A relação é impedida pelas leis e costumes orientais. Fica evidente que o heroísmo de Aladdin consiste na defesa que o personagem faz de valores externos à sua cultura, como o desejo de ascensão social, pois o filme chega ao clímax quando esses costumes são suplantados em prol da justa união do casal apaixonado, que se casa apesar de pertencerem a classes sociais distintas.
Outro filme que merece destaque é Regras do Jogo (2000), do diretor William Friedkin. Este filme é um ótimo exemplo de como o poder da imagem pode ser usado. No longa, é mostrado o julgamento de um grupo de soldados acusados de abrir fogo contra uma multidão de árabes desarmados. Ao final, é provado que os árabes, incluindo crianças, é que atiraram contra os soldados, que apenas se defenderam. Em apenas uma cena, o filme é bem-sucedido em fazer com que o espectador inverta sua posição de simpatia aos árabes, em favor dos americanos.
Em contrapartida a todo o processo de estereotipização dos árabes através das grandes produções cinematográficas, via representação hegemônica associada ao “Mundo Árabe” e processo de construção de um imaginário acerca do mesmo, há outra gama de produções fílmicas que se utilizam de um discurso bem diferente dos chamados blockbusters. Este tipo de produção é conhecida tanto pela comunidade cinematográfica quanto pelo senso comum como “produção alternativa”. São os chamados “filmes alternativos”.
Os filmes ditos alternativos são conhecidos pela sua baixa visibilidade nos grandes circuitos, bem como pelos seus orçamentos de produção considerados baixos. Mas isto não é regra. Na realidade, o termo “cinema alternativo” é bem genérico e nele está contido uma gama de filmes com diferentes características. O que queremos ressaltar em nossa análise, é que os filmes que se utilizam de uma representação acerca dos povos árabes desconstruída daquela dita hegemônica, em sua maioria estão inseridos nesta categoria (cinema alternativo).
Como já foi dito anteriormente, as grandes produções cinematográficas em muitos casos são patrocinadas por grandes empresas e/ou por órgãos governamentais. Logo, esse tipo de produção pode carregar em si um discurso ideológico “orientalista” produzido consciente e/ou inconscientemente que influencia na produção de um estereótipo sobre os povos árabes. Diferentemente destas produções, outras se utilizam de um discurso bem diferente deste último. São produções que retratam os povos árabes de forma humanizada, não “vilificando-os” como fazem muitos dos blockbusters. Estas produções muitas vezes não costumam estar associadas a empresas ou ao governo, ou se associados exercem certa “independência criativa” com relação aos mesmos. Não costumam também estar presente nos grandes circuitos, sendo considerados por isso mesmo alternativos.
Dentre estes filmes, podemos destacar inicialmente as produções de alguns cineastas israelenses como Amos Gitai (Free Zone, 2001), Eazran Kolirin (A Banda, 2007), Yoram Honig (Uma Lição de Paz, 2006), Ari Folman (Valsa com Bashir,) B. Z. Goldberg (Promessas de um Novo Mundo, 2001) e Eran Riklis (Lemon Tree, 2008, e A Noiva Síria, 2004). São diretores que representam o cenário do cinema alternativo mundial, especialmente do cinema produzido no Oriente Médio.
Elogiados pela crítica, mas não muito conhecidos pela população no geral, são diretores que, com certa diversidade de enfoques e gêneros, apresentam em seus filmes uma abordagem comum: o conflito no Oriente Médio, que para estes últimos aparece como uma guerra absurda responsável por criar um ciclo de violência sem sentido. Inspirados em intelectuais, como o escritor Amós Oz, como o citado Edward Said, apontam como a única solução possível para o conflito: dividir a terra, praticar a tolerância e conviver civilizadamente.
Podemos citar o exemplo do filme Lemon Tree (2008) do diretor Eran Riklis. Lemon Tree conta a história de uma palestina que vê sua plantação de limões ameaçada após a mudança do Ministro da Defesa de Israel para uma casa ao lado dos limoeiros, bem na fronteira entre Israel e Cisjordânia. Além de mostrar uma postura sensível sobre o conflito árabe-israelense e a problemática das fronteiras, o filme tem como mérito mostrar uma imagem extremamente humanizada tanto dos personagens árabes como dos personagens israelenses. Na realidade, essa é uma característica comum presente tanto em Lemon Tree, quanto em muitos outros filmes deste tipo, ao contrário de muitos blockbusters, os quais representam os personagens árabes como verdadeiros vilões e, ao mesmo tempo, os personagens ocidentais como heróis.
Além destes filmes citados, temos também as produções realizadas no Oriente, que por razões evidentes, também apresentam outra visão sobre o mesmo, a qual nós ocidentais não estamos acostumados. Podemos citar o cinema alternativo iraniano, cujos representantes são os cineastas Abbas Fiarostami, Jafar Pahani, Mohsen e Samira Makhmalbaf.

CONCLUSÃO
Por essa análise, nota-se, portanto, que o cinema pode ser feito baseando-se em estereótipos já existentes, criando-os e recriando-os a todo o tempo e contribuindo para a disseminação e incorporação de imagens e símbolos associados aos árabes. Como já comentado, a criação de um imaginário sobre os árabes, e os orientais no geral, vai emergir do que Said denominou de Orientalismo.
Tendo-se acesso somente a algumas grandes produções cinematográficas, estas possuindo uma abrangência e divulgação muito maior que as produções alternativas, ao se pensar o “árabe”, a primeira referência é a dos estigmas criados sobre o Oriente. Estes estigmas tendem, inclusive, a ser reproduzidos por outras mídias, como, por exemplo, jornais e revistas. O “Ocidente” tenderá a ver os árabes de uma forma simplista e malévola, o que contribui para a legitimação de ações de dominação, a partir do momento em que o árabe vai ser enxergado como um inimigo. Isto gera um cenário xenófobo e hostil.
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1 Cabe ressaltar que “Oriente” e “Ocidente” são conceitos que consideramos equivocados, na medida em que tal separação é por si mesmo uma construção social, mas por questões metodológicas estaremos utilizando-os em nossa análise.



BIBLIOGRAFIA

BARBIER, R. Sobre o imaginário. in: Em Aberto, Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar. 1994, p. 15-23

BARBOSA, J. A arte de representar como reconhecimento do mundo: O espaço geográfico, o cinema e o imaginário social in: GEOgraphia – Ano. II – No 3 – 2000

SAID, E. Orientalismo: O Oriente como um invenção do Ocidente. Rio de Janeiro: Cia de Letras, 2001

SARMENTO, J. Representação, Imaginação e espaço virtual: Geografias de Paisagens Turísticas em West Cork e nos Açores. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

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